Porto, um real transubstanciado
em poesia.
Maria Thereza Azevedo
O projeto Porto Kyvaverá- cartografia afetiva de um
território marginal, de Mari Gemma de La Cruz, coloca uma lente potente no histórico
bairro do Porto, em Cuiabá, para dar a ver as suas feridas expostas, mas
invisíveis a olho nu. Denuncia um real, memórias do descaso, ao fotografar
prédios e terrenos abandonados. Mas não, sem criar um processo artístico
performativo, híbrido, inserindo o projeto numa vertente da arte contemporânea,
que inclui o caminhar como um procedimento estético. Caminhar pela cidade, sem
destino fixo, é abrir-se para um mundo
não visto no dia a dia, é uma atitude e um modo de se relacionar com a cidade. Lembra
o delirium ambulatorium de Oiticica, a
deriva dos situacionistas, a flanerie de Baudelaire, ou as andanças
dos dadaístas e dos surrealistas. Um caminhar que sente, observa, pés que puxam
para o olho o que está latejando na paisagem.
Um
segundo movimento deste processo artístico é algo semelhante a uma assemblage, ou talvez uma instalação ou site especific em pleno bairro: nos
becos, nos enferrujados, nos desmoronados, nos nichos largados, nos descascados
das paredes, nas portas amarradas para se manterem em pé. Nestes lugares
semimortos, a artista faz uma homenagem de cuidado e afeto pela cidade. Paninhos de crochê, jarros com flores, caminhos
de mesa, objetos domésticos em uso são inseridos nestes cenários, como para
lembrar que ali existiu vida. Estes objetos compostos na paisagem de abandono promovem
uma invenção de tramas de onde podem emergir narrativas e ativação de memórias.
Formam um jogo que propõe uma ressignificação do espaço, sugerindo que a cidade
é como uma casa, precisa ser cuidada.
As
fotografias destas composições registram a memória do vivido e a memória da
efemeridade da composição, o que estava ali faz muito tempo e o que esteve ali
por alguns minutos. O efêmero é para lembrar, trazer à tona, um imaginário que incide
nas materialidades do real para construir sentidos de percepção e estruturar
compreensões. São formas de experimentar
a cidade e compor um mosaico simbólico
de imagens e palavras, numa cartografia artística e afetiva dos espaços urbanos.
A
partir dos registros fotográficos realizados, imagens/ documentos dos cenários/paisagens,
captados por ocasião das suas errâncias pelo bairro, a artista passa a
interferir digitalmente nas fotos com novas composições, sobreposições, outras
cores. Ocorre, então, uma mutação de dados tomados do real que provocam um
estranhamento, uma transubstanciação poética. Tanto nas fotos, como no vídeo, a poesia se
instaura no entre onde são
construídas as fissuras/ passagem para um ver além do que existe.
Combinatórias
Mapas subjetivos,
cartografia das formas e conexões possíveis.
Exposição na Galeria Scarpa, Sorocaba de 6 a 30 de maio de 2016
Por Maria Thereza
Azevedo
A
exposição Combinatórias de Herê
Fonseca se configura como uma cartografia das formas. Ludicidade enquanto
experiência de jogo e a repetição como recuperação do já inscrito, numa espécie
de ritornelo. Um sistema que carrega semelhanças e dessemelhanças promovendo
possibilidades de interconexão por meio da linha que prolonga, complementa,
interrompe, tal como jogos de armar que envolvem o fruidor numa
brincadeira com o olhar.
Os trabalhos estão interligados, pois fazem
parte de um sistema de multiplicidades e expansões, repetições com diferenças. Realizados a
partir de uma matriz ideogramática como geradora de outras formas, carregam
variações que se articulam numa possível escrita/assinatura de mundos criados
como mapas subjetivos.
Curadora: Maria Thereza Azevedo - Doutora em Artes
e pesquisadora da linha Poéticas Contemporâneas.
Texto para catálogo da Exposição
EXPERIENCIA TUMULTO III
de Wagner Barja. Curadoria de Marisa Flórido - CCBB em Brasília, de 25 de fevereiro a 20 de abril de 2015
Jonas:
deslocamentos e
repetições em instalação multimídia.
*Maria Thereza Azevedo
Foto Markus Avaloni
Jonas, o profeta desobediente é engolido por uma baleia em alto mar e lá fica por três dias, em camarinha. Barja, o artista tumultuador, vomita as vértebras da baleia, mas antes, cava-lhes no osso para injetar/enfurnar imagens, vertendo e invertendo memórias de águas naquilo que dá sustentação aos corpos.
Victor Turner afirma que toda experiência é um risco e uma trans-forma. Na obra Jonas, de Wagner Barja, a experiência/risco é a de um performador invisível que pratica a ideia de corpo sem órgãos de Antonin Artaud. Des-organiza e des-obedece a ordem das coisas. Tira as vértebras da baleia do lugar e as expõe, feridas, como Buñuel expôs o corte do olho à navalha no filme Um cão andaluz para que vejamos, não com os olhos.
As vinte esculturas/objetos, fundidas com técnica secular usada pelos alquimistas, estão instaladas no espaço exposicional, como trapézios pendurados por cabo de aço. São trans-formas, resultantes da experiência/ação de enfrentar baleias em mares revoltos para arrancar-lhes as vertebras e reordenar o lugar das imagens no terreno movediço dos sentidos. Nesta operação deslocamento, o artista propõe um fora de lugar que carrega em si a promessa de outros cursos/percursos. São desvios de rotas, linhas de fuga que podem trazer para a evidência aquilo que estava escondido no obvio, ou inventar territórios até então desconhecidos.
Ao serem lançadas em instalação, as vértebras tornam-se autônomas, como animais híbridos imaginários, quimeras, criam asas, agora para sustentar não o corpo da mítica baleia, mas imagens, pro(f) éticas. O osso duro da vértebra delimita as bordas/ fronteiras do vazio que carrega a reminiscência do liquido que não escorre, pois está preso na imagem/memória que nos bate repetidas vezes na cara, num insistente loop, sem remorsos. Como um mantra, o loop reiterativo, por meio da repetição, pode levar a sentidos outros.
As cavidades uterinas das vértebras aladas projetam recuerdos de águas: profundas, rasas, turvas, tranquilas, violentas, vermelhas. A água, geradora de vida e de travessia, não cessa de dissolver-se e transformar-se. Bachelard lembra que o sonhador da água é um ser em vertigem que deixa constantemente desmoronar algo de si. Para ele a água é matéria que está sempre prestes a tornar-se outra.
Os híbridos e os fora de lugar provocam estranhamentos, como provocaram os monstros míticos do medievo ou os ready made de Marcel Duchamp. Tumultuam, des-concertam, des-estabilizam e levam a rearranjos em nossa percepção. Obra síntese da exposição Experiência Tumulto III, Jonas carrega a trajetória do artista, que vem praticando deslocamentos desde Deitado eternamente de 1986. É um tirar coisas do lugar e reordenar, mas não, sem antes passar pelas entranhas do tumulto antropofágico, que pode instigar territórios de existência e alterar os modos de subjetivação hegemônicos.
No caldeirão de bruxas da arte contemporânea, mexem-se poções que misturam procedimentos trazidos da história da arte. Em Jonas, além de evocar o mítico/bíblico Jonas, engolido pela baleia e as práticas medievais da fundição, o artista nos remete ao dadaísmo e ao minimalismo, pois pratica deslocamentos e repetições.
As vértebras aladas expostas em forma de uma instalação multimídia, memórias no osso, cavadas para verter imagens de águas, se assemelham às mônadas abertas de Gabriel Tarde, abrem-se para conexões de múltiplos fluxos de sentidos, que escapam, escorrem, desdobram-se e transbordam a cada olhar e podem reinventar mundos.
*Cineasta. Doutora em Artes pela USP. Coordena o PPG Estudos de Cultura Contemporânea (mestrado e doutorado) da UFMT e atua na linha: Poéticas Contemporâneas. É líder do Grupo de Pesquisa: Artes Híbridas: intersecções contaminações, transversalidades.
Foto Lis Marina
Foto Lis Marina
Texto para catálogo da Exposição
O que é que a cidade tem?
Curadoria Serafim Bertoloto.
Lé com cré ou as camadas desdobráveis de O que é que a cidade tem?
Maria Thereza Azevedo
Cores
Marrons, amarelos, ocres, azuis, verdes, pretos, vermelhos, brancos e vários tons de cinza.
Coisas
Latas cortadas com tesoura de cortar lata; terra colorida tirada do fundo de um buraco cavado na Chapada; argila modelada e queimada num forno onde pedaços de madeira são consumidos por fogo vermelho virando pó cinza; fios de algodão branco enrolados por mãos cafusas de mulher; tecelagens fabricadas por máquinas movidas por um relógio que marca também segundos; trama, tecido, tela, feltro; madeira serrada com serra que zune nos ouvidos deixando o pó bege se espalhar pelo chão que vai para o lixo e viaja pela cidade num caminhão com triturador ligado e homens pendurados na madrugada; marteladas com ferro fundido e forjado encaixado num pedaço de madeira em gesto de cima para baixo como um pendulo invertido; mdf, prensa, papel liso, papel estriado, papel com notícias enrolado no arame em várias camadas com grude de polvilho; borracha de pneu com arame dentro; arame maleável cortado com alicate na parte que não é alicate; cacos de vidro bem pisados; areia grossa de rio, daquelas de juntar no cimento para construir casas, transportada por um caminhão que abre a parte detrás da carroceria; azulejos quebrados em pequenos pedaços vermelhos; caixas cilíndricas de armazenar produtos para limpar piscina; cimento misturado com água e depois secado; goivas, miolo de pão modelado com os dedos enquanto agrada os netos; cola plástica branca comprada na papelaria da Rua 1; prego da estrada do moinho vendido por um homem com palito de dentes na boca; verniz cor de imbuia à base de solvente; palhinha trançada na cadeira no lugar em que se senta para acomodar o olho de Bataille; madeiras retas retangulares e quadradas contornando tecidos com as marcas em cor de seres que imaginam.
Imagos
Onças pintadas, cobras enlaçadas em troncos, macacos macaqueando no alto das arvores, bois, peixes no rio, peixes fora do rio, tuiuiús na paisagem, tuiuiús fora da paisagem, pacas, tatus com cara de tacho, cotias inseridas no contexto, cachorro dormindo, mulheres de lata, homens de gravata, mulheres sem roupa, homens sem gravata, arvores com folhas em diferentes verdes com nervuras que não se igualam, homens que pescam com varas e anzol pendurado em fio de nylon, Sebastião, o português, amarrado na cruz com lanças no peito, escudos, cordas, crianças de várias idades, cabeça de boi, gatos preguiçosos em várias alturas, canoas assim e assado, galinhas ciscando, galinhas sem ciscar, tartarugas de terra fazendo alongamento, jarros, barros, jarras, quimeras ali, quimeras lá, lamparinas gigantes, India Miss com faixa de coca cola, boi enfeitado de cetim, mapa devastado, bandeira do Brasil, três pacas olhando para fora da tela, formas vermelhas estáveis e formas leves que se movimentam.
Seres que imaginam
Vitória além de montar totens com caixas cilíndricas, modela com miolo de pão pequenas esculturas para os seus netos enquanto conta histórias. Segadas cata o que não serve para nada e transforma em composições negras. Herê transcende a figura e modela, para terra e céu, esculturas estáveis e esculturas móveis. Gervane inventa um tuiuiú patrimônio com o corpo atravessado por cruz suástica nazista com falo ereto, da cruz ou do Tuiuiu? Almira, como uma Alice no país das maravilhas, aumenta o tamanho da lamparina. Nunes recorta nas latas suas potentes mulheres coloridas. Adir brinca nos campos do Senhor. Espindola denuncia a devastação da Amazônia. Vermelho imprime gatos. Gripp enfeita o boi com cetim.
Arte bruta, figurativa, conceitual, contextual, abstrata, pintura sobre papel e sobre tela, gravura, esculturas e objetos, tudo junto e misturado.
Cidade
Dobras, desdobras, redobras. Cidade. Cuiabá. Olhares neobarrocos. O que eu vejo, o que o artista mostra/revela/viu, o que o outro pensa que vê através destes olhares outros. Fiapos de memória em distintas temporalidades cruzadas. A cidade sendo narrada com as mãos. O registro mnemônico de experiências das mentes e afetos que habitam Cuiabá. Das idílicas paisagens de Adir Sodré e Miguel Penha, memórias de um paraíso perdido, às cenas de um cotidiano revelador de um estado de coisas como a desigualdade social. Denúncias de devastação e territórios desfalcados em Humberto Espindola e de uma imposição icônica, um nazituiui por Gervane de Paula, bem como a ironia de Clovis Irigaray na índia com faixa de miss coca cola e de João Sebastião em A Puta e O Brasil é feito pornôs, memória de um debate político, econômico e social inscrito em uma época na cidade e no país. As hinterlândias cuiabanas trazem para a composição da cena urbana suas lendas, causos, artesanias como o boi à serra e as moringas de São Gonçalo Beira Rio.
Nesse contexto, inserções de diferentes realidades e diferentes temporalidades emergem no espaço, recriando as interações de uma cidade possível. A diversidade de imagens e de olhares em multirelações instauram uma cidade consubstanciada, resultado de uma articulação entre agentes, objetos, espaços e a memória dos gestos e coisas que se relacionaram com estas obras impregnando-se nelas. Relações invisíveis potencializam uma tecedura imaginária de mundos, na realidade, incompossíveis.
A labiríntica O que é que a cidade tem? ao ser apropriada por outros olhares, se enche de pontos dobra potencializando as camadas desdobráveis da cidade.
Maria Thereza Azevedo é do PPG Estudos de Cultura Contemporânea ( Mestrado e Doutorado) da UFMT, líder do Grupo de Pesquisa Artes Híbridas: intersecções, contaminações transversalidades e do Coletivo à deriva.
Nenhum comentário:
Postar um comentário